JOSÉ AUGUSTO
VALENTE E SAMUEL GOMES*
Na primeira metade deste século, o PIB
brasileiro cresceu em níveis próximos aos níveis mundiais. A corrente de
comércio exterior brasileiro passou de US$ 100 bilhões para US$ 480 bilhões, a
movimentação de contêineres elevou-se de 2 milhões para 5,3 milhões e o Brasil
teve crescimento no comércio exterior maior que a China e muito maior que os
Estados Unidos e Alemanha, no período 2009-2011. Como 95% do comércio exterior
brasileiro se dá através dos portos, é razoável imaginar que o marco regulatório
do setor tenha contribuído para esta performance. Apesar disso,
surpreendentemente o país é sacudido por uma “urgência”: a imediata e radical
substituição do “caótico” modelo portuário brasileiro, acusado de ser a causa de
“gargalos” e responsável pelo “custo Brasil”. Esta “evidência” ocupa as
manchetes dos principais jornais, as capas das grandes revistas e ganha espaços
crescentes nos telejornais e rádio-jornais.
Coincidindo com o repentino alarido da mídia, o
governo atua junto ao Tribunal de Contas da União para impedir o julgamento de
processo TC-015.916/2009-0. A base do julgamento seria o robusto relatório da
SEFID – Secretaria de Fiscalização de Desestatização e de Regulação que,
consolidando anos de extensa e profunda investigação, relatório concluía pela
inconstitucionalidade e ilegalidade da prestação de serviço público sem
licitação pelos terminais de Cotegipe (BA), Portonave (Navegantes/SC, processo
administrativo iniciado em 1999), Itapoá/SC (processo iniciado em 2004) e
Embraport (Santos/SP, processo iniciado em 2000) e declarava a leniência
fiscalizatória e regulatória da ANTAQ – Agência Nacional de Transportes
Aquaviários e da SEP - Secretaria de Portos da Presidência da República. As
informações da imprensa são de que o governo teria comunicado ao TCU que estaria
resolvendo o problema com a edição de uma medida provisória. O TCU suspende o
julgamento e o governo edita a Medida Provisória 595/2012, revogando a Lei dos
Portos e legalizando atividades ilegais dos referidos terminais privados de uso
misto que prestavam irregularmente serviço público sem licitação.
Editada a medida provisória, a pressão dirige-se
ao Congresso Nacional. A grande mídia passa a divulgar “informações de fontes do
Planalto” de que a Presidente não admitiria qualquer alteração na MP. A ministra
da Casa Civil Gleisi Hoffman vai à Comissão Mista da MP e repete a cantilena
apocalíptica de que o sistema portuário é caótico, está ultrapassado e precisa
ser substituído por um outro, mais “moderno” e que estimule os “investimentos
privados”.
O modelo vigente até a edição da MP contava com
apenas 20 anos de implantação (Lei 8.630/93). É o modelo Land Lord Port,
praticado em todas as economias organizadas em todos os continentes, culturas,
países novos e antigos e com diferentes regimes políticos. É um modelo universal
que resulta da experiência de cinco mil anos de comércio marítimo, do qual o
portuário é parte. É como funcionam os principais portos do mundo, como o Porto
de Rotterdam, anterior à criação da Holanda, o de Gênova, anterior à Itália, o
de Hamburgo, anterior à Alemanha.
No modelo Land Lord, ao Estado cabe o
planejamento estratégico, zoneamento, localização e finalidade, metas,
segurança, regulação. À iniciativa privada a operação dos terminais. O seu
adequado funcionamento pressupõe que o Estado cumpra sua parte. Mas, segundo o
TCU, a SEP e ANTAQ atuaram no sentido de sabotar o funcionamento do modelo, ao
tempo em que se mostravam candidamente complacentes com a prestação ilegal de
serviço público pelos terminais privados de uso misto.
A MP elimina a distinção entre terminais
privados de uso público nos portos organizados (arrendatários públicos ou
privados selecionados mediante licitação) e terminais de uso privativo misto
construídos por empresas públicas ou privadas dentro ou fora do porto
organizado, simples autorizatários da ANTAQ. No marco regulatório revogado, os
terminais portuários de uso privativo deviam ter por justificativa de
implantação e operação o transporte da carga própria da empresa autorizatária,
admitindo-se, no caso das áreas de uso misto, a movimentação de cargas de
terceiros, em caráter eventual e subsidiário, tão somente para evitar a
ociosidade na operação do terminal. Tais terminais exerciam atividade econômica:
instalações de auto-serviço que serviam ao seu titular em processos de
verticalização logística integrante de processos de integração produtiva. Por
isso, poderiam funcionar mediante simples autorização do poder da ANTAQ.
Assim, a principal consequência da MP 595 – e a
mais nociva – é a possibilidade de prestação de serviço público de exploração de
portos por empresas privadas sem licitação, com contratos eternos. Logo, sem a
obrigação de ofertarem serviço adequado, universal, contínuo e com modicidade
tarifária, por prazo determinado e com previsão de reversão dos bens afetados em
favor do porto organizado, em evidente assimetria concorrencial em relação aos
terminais privados e públicos nos portos organizados, submetidos a todos estes
condicionantes. É o que vinham ilegalmente fazendo os terminais privados
beneficiados pela suspensão do julgamento do TCU e pela edição da MP. O terminal
da Portonave, por exemplo, movimentava apenas 3% de carga própria e 97% de
cargas de terceiros (serviço público) em frente ao Porto de Itajaí/SC e sob as
barbas lenientes da ANTAQ e da SEP.
Ocorre que a Constituição veda a hipótese de
prestação de serviço público de titularidade de União por particular sem a
realização de licitação e submissão ao regime público. O artigo 21, XII, da
Constituição estabelece que compete à União explorar diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão os portos marítimos, fluviais e lacustres. E
o art. 175 prevê que incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou
sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação
de serviços públicos. Neste sentido, a MP é inconstitucional.
Do ponto de vista da eficiência do sistema
portuário e da redução dos custos da movimentação portuária, a MP produzirá
efeitos contrários aos preconizados pelos seus defensores. Não existirá a
decantada redução de custos pela “competitividade”, em razão de uma imaginária
competição entre terminais. A experiência internacional mostra que o que
assegura redução de custos portuários é a escala. Por isso, os principais portos
do mundo possuem não mais que três terminais. O verdadeiro escopo da MP é o
comércio de contêineres. Quem define o tamanho do navio e o terminal a ser
utilizado na carga e descarga de contêineres são os donos dos navios, conforme a
demanda e o calado dos portos numa rota comercial. A demanda é resultado do
nível da atividade econômica. Calado depende de dragagem. Nada a ver com uma
imaginária competição entre terminais.
Os armadores são os grandes beneficiários desta
MP, já que são eles e não os usuários que escolhem os terminais onde irão
atracar. As dez maiores empresas de navegação do mundo são responsáveis por 70%
do comércio marítimo. Na realidade, são os armadores que recebem a remuneração
dos exportadores e importadores e pagam aos operadores pela movimentação
portuária. Normalmente, repassam 50% a 60% do valor recebido pela movimentação.
O restante incorporam à remuneração global da operação (frete). Ao vincularem-se
a portos privados não submetidos ao regime de prestação de serviço público e
diante do enfraquecimento dos portos públicos, os armadores poderão camuflar
preços das operações portuárias, simulando reduções de custos e aumentando a
gritaria contra o “custo Brasil” e a “ineficiência dos portos públicos”. Em
seguida, destruídos os portos públicos e dominado o mercado, imporão suas
condições para o transporte marítimo, controlando a logística portuária e
reduzindo a competitividade dos produtos industriais brasileiros no comércio
internacional. Simples assim.
Outros aspectos poderiam ser objeto de análise,
como o regime de trabalho dos portuários e a centralização das decisões de
investimentos dos portos organizados no nível federal, mas a exiguidade do
espaço e a gravidade dos efeitos da privatização e da desnacionalização dos
portos para a economia e a soberania nos levam a privilegiar os aspectos
destacados. Este artigo é escrito antes da votação da MP 595 pela Câmara e pelo
Senado. Nossa esperança é a de que, pelo bem do Brasil, ela seja rejeitada ou,
quando menos, modificada substancialmente de modo a mitigar o estrago que sua
edição já provoca.
*José Augusto
Valente, consultor em Logística e Transporte, Diretor Executivo do Portal T1 de
Logística e Transporte. Samuel Gomes, advogado, membro da REI – Rede de
Especialistas Iberoamericanos em Infraestrutura e Transporte, ex-presidente da
Estrada de Ferro Paraná Oeste S/A – Ferroeste. Artigo publicado originalmente no
Portal Agência T1.
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